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terça-feira, julho 08, 2008

No Palanque do Ostracismo

Seu nome era Pedro. Poderia bem se chamar João ou Antônio que, certamente, isso nada mudaria. Ademais, reafirmo de pronto aos analistas inveterados que, de fato, chamar-se Pedro não trazia ao nosso homem em questão nenhuma diferença quanto à sua situação. Existem certos nomes, derivados da mente extra-inventiva de pais e mães ousados que, notoriamente, condenam desde o cartório o desenvolvimento social de uma criança. Mas se pudermos traçar alguns fatores que influenciaram para que Pedro estivesse tão macambúzio naquela noite, nenhum deles diria respeito ao seu nome.

E tão certo quanto se chamava Pedro é também o fato de que não sentia nem frio nem fome. Perceptivelmente poder-se-ia remarcar que algo lhe perturbava e é possível que mesmo ele próprio houvesse por um tempo se indagado se não seria de frio ou fome que sofria. Mas tão logo aproximara-se de uma daquelas pequenas tendas de lanches gordurosos bateu-se-lhe um iminente mal-estar no estômago. Distanciou-se de pronto e foi buscar onde encontrar água potável.

Ao longe fazia-se ouvir em alto volume uma banda musical qualquer. Não parecia ser possível distinguir-se ao certo o gênero de que precisamente se tratava e Pedro não procuraria se esforçar neste sentido. Doía-lhe ligeiramente a cabeça e justamente por isso foi que procurara se distanciar de todo aquele ruído. Mas agora que almejava todavia um tanto mais de sossego lá estava ele como que embriagado pelo frenesi constante e cotovelante da imensidão de gente.

Quanta gente há por aqui! – e assim realmente haveria de ser - nestas noites de cidade abandonada todos se prontificam a amontoar-se tão logo uma pequena novidade ameace despontar. Uma lástima somente que viera lhe bater aquela estranha sensação enquanto tantos se divertiam. Por todos os lados risos, gargalhadas, gritos de homens bêbados e o carnaval de corpos e desejos à mostra. Em alguns cantos, vários deles talvez, iluminava-se por um breve intervalo a imagem de um ou outro rosto conhecido - os quais Pedro rapidamente evitava perpassar. Ninguém lhe interessava a presente.

Curioso é que Pedro não era – se assim se pode dizer aos que o percebem em grande parte do seu tempo – um sujeito rabugento. Tinha lá seus momentos de descontentamento como todos, bem entendido. Se nos for concedido certo tempo para se considerar podemos, de fato, reunir alguns aspectos que poderiam estar-lhe atormentando. Isto seria até mesmo algo não muito duro de se realizar – a vida de Pedro era como um livro aberto. Quem com tanta freqüência se expõe na boemia só conserva de segredos aquilo que os demais boêmios inevitavelmente acabam por esquecer – e, pelo que se sabe, Pedro era um jovem entre os seus bem comentado. Como primeiro indício desconfia-se do mais óbvio – sim, havia mesmo uma garota que lhe perturbara a paz uns meses atrás. Mas se, por um lado, Pedro a ela antes se referia com tanto entusiasmo e, pouco após, com tristeza, hoje só dela falava com desdém – e isso quando o provocavam a tal. Havia muito que já se afirmava feliz no que tange seus amores. Dinheiro, que certamente não muito possuía, tampouco era um assunto que lhe parecia perturbar. De todo jeito, nunca se sabe. Não era, por outro lado, um rapaz deveras satisfeito com sua rotina, dia-a-dia ou ganha pão. Mas tão bem quanto inquietado era pela monotonia do cotidiano, sempre se mostrava alegre e jovial nos demais momentos. Tampouco muito se queixava, afinal.

Caminhou de um lado a outro durante longo tempo. O vulto dos corpos, bocas enormes e sorridentes, o odor de perfume e suor... Procurou desviar seus olhos, fitar o céu acima, sem estrelas. Mas a cabeça lhe incomodava, as imagens pareciam girar. O que mais lhe perturbava era o calor. Mas havia também o barulho, os gritos, as pessoas. Mulherezinhas metidas no ritual da sedução, seus amigos seduzidos – ele mesmo, quantas vezes também já não se deixara seduzir pelo charme qualquer de uma mulher fútil? Pedro só queria o silêncio. Talvez o sossego externo contribuiria para acalmar-se por dentro – pois já não sabia de onde ebulia o sentimento de desconforto - seus próprios pensamentos eram cansativos e enfadonhos. Mas dali onde estava parecia impossível escapar. Quanta gente, meu Deus! Que calor! – e quanto mais esforçava-se para se desentranhar mais preso se encontrava no laço. Quanto mais rápido suas pernas erravam incertas de um canto a outro maior o número de corpos com o qual se chocava.

Não, não era pela garota de tempos atrás, nem pelo dinheiro, nem pela rotina, nem pela embriaguez – era só porque tinha de ser, por que era gente demais! Talvez mesmo um sintoma de um certo egocentrismo exacerbado, antropofobia. Lá rodava Pedro, a formiga, em círculos e círculos entre seus iguais. Numa mesma festa, numa mesma cidade que aquele mundo de gente. Eram todos iguais. Pedro ajudava a completar a multidão – mas não! Eu quero fora, eu quero fora! Abra a porta, Pedro. Cuidado! Corra, corra! Ah, o que é isso!? Você ainda consegue se embriagar!?

Sua mão retinha firme um copo – era só água. Engoliu-a prontamente enquanto procurava desvencilhar-se daquela massa humana. Preferia estar morto a ser um deles. Contribuir para aquela balbúrdia, aquela comemoração inútil, exaltação de uma noite vazia. Agora que estava completamente ébrio sentia ódio - como morria de ódio! Quanto mais se apressava menos entendia sobre seu caminho. Acabou por deparar-se três ou quatro vezes sobre o mesmo ponto. Alguns amigos que o viam de longe - começavam a inquietar-se.

Mas e se viessem tomar-lhe o braço, conduzir-lhe a algum lugar!? Tal idéia causava-lhe mesmo calafrios. Ser tomado, ser conduzido. Não queria que ninguém viesse apresentar-lhe o caminho. Antes um bêbado perdido, antes um bêbado perdido, sem escrúpulos e orgulho – do que ser conduzido por suas mãos sensatas! Afinal, o que farão por mim? Virão me salvar?? Virão me ensinar como me contentar em meio a esta multidão. Virão me ensinar a ser feliz entre os seus, aqui neste meio, neste calor!? Afastem-se de mim, quero estar só! Quero estar só!

Desesperado e enlouquecido Pedro penetrou por uma porta qualquer, pelos fundos de uma construção que já não identificava. Seguiu corredores vazios, por vezes perpassou um ou outro rosto dos quais nada se ocupou. Correu como que enlouquecido. Ao fundo percebeu uma luz. Uma luz! A ela se dirigiu sôfrego, aterrorizado por aquela eufórica angústia. Foi somente após os aplausos, depois que seus olhos vieram a se adaptar ainda que levemente ao jorro do holofote que se deu conta – havia acabado por alcançar o palco.

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